Na minha nova e louca rotina, acordei as 16 horas para ir trabalhar. Como de costume fui pegar um copo com água e bebe-lo em frente a janela. Chegando lá deparei-me com a seguinte imagem: um senhor sentado numa cadeira de plástico olhando a vida passar.
Água e ver a vida passar, isso me lembrou o momento que adquiri o costume de beber água ao acordar. Isso foi durante uma longa caminhada pelos Andinos.
Já estava há horas caminhando, logo ia escurecer e eu não via nenhuma vida ao redor, excluindo as plantas. Eis que de repente sai por detrás dos arbustos um senhor miúdo falando tão rápido que só consegui entender o final: Vem comigo!
A mata era fechada. Ele abriu caminho com as mãos e sumiu. Entrar na mata me parecia a melhor opção e foi isso que eu fiz.
Depois de alguns arranhões e tropeços na mata fechada, um clarão surgiu. Era um imenso vale.
A minha esquerda havia um desfiladeiro, a direita a casa do velhinho e mais a frente um enorme lago - que mais tarde descobriria que a água não era tão quente quanto imaginei - onde brincavam uma mulher e algumas crianças.
Quando voltei meu olhar para a casa, o velhinho já estava entrando e fazia sinal para que eu fizesse o mesmo. O cansaço falou mais alto do que a beleza do lago, que a vontade de ver o desfiladeiro mais de perto, do que a vontade de mergulhar e principalmente falou mais alto do que a voz de meu pai ecoando em meus ouvidos quando criança a dizer: Moleque não dá mole, não entra aí!
Uma casa muito diferente foi o que encontrei. Peles de animais e muita madeira foi o que vi. Poucos segundos depois uma menina me segurou forte pela mão e me guiou até o quarto. Chegando lá apontou para a cama. Ela não pronunciou uma palavra sequer, mas entendi tudo. Antes dela sair, fui presenteado com um longo sorriso, um abraço e um "adiós".
Tirei a pesada mochila das costas e deitei. Em poucos segundos estava dormindo de maneira plena, como a muito tempo não dormia.
Meia noite em ponto eu despertei. Sentia como se alguém me chamasse. Pé ante pé fui caminhando pela casa, primeiro as escadas, depois pela sala. Tentava não fazer barulho, mas o ranger da madeira me impossibilitava. Não precisei acender as lamparinas, era noite de lua cheia e a casa não possuía cortinas. Quanto mais eu caminhava pela casa, menos vida encontrava. De repente a pequenina entra pela porta da sala com o corpo pintado e um cocar na cabeça; pega um pequeno instrumento com cordas, segura na minha mão e me leva para fora. Chegando lá parecia que uma enorme lâmpada estava acessa no céu. Perto do lago estava a família dela dançando entorno da uma fogueira. Ainda tenho essa imagem gravada em mim. Assim como as que ocorreram durante a noite.
Timidamente me aproximei. Quanto mais lento caminhava, mais fortes eram os puxões da pequena. Quando chegamos na fogueira ela correu para pegar tintas, enquanto isso seu avô, o velhinho que me buscou na estrada, me enfiou uma folha na boca e mandou que eu a mastigasse. Um gosto amargo foi o que tocou minha papilas gustativas. Pouco tempo depois, a mãe da pequena me deu um copo para beber um líquido. Era um gostoso chá. Foi quando o velhinho pronunciou as suas primeiras palavras: Primeiro o remédio amargo para limpar e purificar, depois a doçura da vida.
Foi ele terminando de falar e a pequena chegando com as tintas para me pintar. Quando ela acabou, apontou para o lago.
- É para eu entrar? - perguntei.
Com a cabeça ela respondeu que sim. Foi nesse momento que descobri o quanto aquelas águas eram frias. Descobri também o que o velhinho quis dizer.
Com a água no pescoço sentia todo meu cansaço físico e espiritual indo embora. Como me diria a pequena mais tarde: aquele lago era mágico.
Quando sai dele uma grande surpresa: o desenho que a menina havia feito tinha se transformado em outro. Não era mais um desenho infantil, ele parecia com os daquela gente da qual eu agora fazia parte. E foi assim que eu me senti a noite toda, parte daquela gente.
Mais folhas para purificar, mais chás gelados, mais bebidas quentes, boa carne e muita dança. A pequenina parecia um anjo dançando.
Pouco antes do amanhecer o velhinho me chamou até o desfiladeiro. Por lá ficamos até o sol chegar. Ele me disse duas coisas que jamais esquecerei: Sempre tome um copo com água antes de dormir e assim que acordar, faça uma prece para limpar os pensamentos e sentimentos ruins que possam ter aflorados enquanto dormia; e sempre escute seu coração, ele fala alto, se comunica bem, foi através dele que minha neta te encontrou, ela ouviu você pedindo ajuda. Está te ouvindo há dias. Do mesmo jeito você a ouviu chamar para a nossa celebração.
O que vocês celebravam?, perguntei curioso.
A sua chegada, pois você vai deixar um pouco de você nessas montanhas e vai levar muito de nós. Será um novo homem, você fez a escolha certa, procurou a purificação para poder voltar a vida na cidade com pouco verde.
Quando ele terminou de falar um vento forte soprou. Ele disse: Toda vez que o vento soprar, peça para ele levar tudo de ruim e trazer o bom e o bem. Nesse momento o pequena chegou e disse: Sua hora chegou, eu te mostro o caminho.
Me levou até o quarto, onde minha mochila estava carregada com comida, água, folhas e chá e me levou até a estrada. Durante todo o tempo ela segurou a minha mão. Na estrada me deu outro beijo, um sorriso, um abraço e disse: você já sabe o que fazer. Quando precisar volte-se para o coração, ele sempre te ajudou. Eu estarei sempre contigo! Só volte quando quiser nos ver, quando a saudade apertar; você já sabe como se purificar, não precisa mais de nós.
Ao pronunciar a última palavra, soltou a minha mão e voltou para a mata.
Olhando esse senhor na cidade com pouco verde me lembrei daquela noite, daqueles dias caminhando.
Meu coração não é mais um ser estranho a mim, é parte de mim. Não sou mais corpo, coração, mente e espírito; sou uma coisa só, sou completo!
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